O surf está hoje na moda e é uma actividade acessível a todos. Há mais de 30 anos era uma novidade, uma aventura que requeria muito esforço e imaginação. Quatro pioneiros do surf no concelho de Portimão recordaram os primeiros anos da década de 80 do século passado, quando carregavam pesadas pranchas nos braços, em longas viagens de lambreta até Sagres e inventavam soluções caseiras para resolver a falta de material necessário ao surf. A palestra, organizada pelo Portimão Surf Clube, encheu o salão nobre do Clube União Portimonense, no sábado à noite, 11 de Abril, no âmbito do evento ‘Surf Vem à Cidade’.
Hoje são directores e empresários. Há 35 anos atrás eram os “vadios” que se aventuravam nas ondas. Luís Brito (director hoteleiro, 51 anos), Fernando Filipe (director hoteleiro, 52 anos), Paulo Martins (empresário de comércio, 56 anos) e António Vieira (empresário de aquacultura, 54 anos) despertaram para o surf ao ver os estrangeiros, sobretudo norte-americanos e australianos, que chegavam ao Algarve em carrinhas ‘pão de forma’, compradas em Londres e Amsterdão para surf trips exploratórias na Europa.
“Pela nossa praia – referência à Praia da Rocha – já passou gente muito boa e que hoje está ligada ao surf mundial“, revelou Luís Brito, dando como exemplo Rory Russell, um dos primeiros ‘riders’ da histórica marca de pranchas Lightning Bolt. “Tivemos o prazer de viver e aprender com eles”, sublinhou o pioneiro algarvio.
Os pioneiros algarvios pediam pranchas emprestadas aos estrangeiros, para experimentar fazer surf. Pediam também emprestados fatos, wax (espécie de cera que se passa na prancha para melhorar a aderência dos pés) e ‘leaches’ (ou ‘shops’, a linha que segura a prancha ao tornozelo do surfista), porque não havia lojas de surf para adquirir esse material. Conseguiam fazer negócios e comprar algum material, que depois partilhavam à vez, porque não chegava para todos.
A novidade chegava ao Algarve também por alguns, poucos surfistas da Zona Centro do País, que rumavam a Sul logo nas férias da Páscoa, para se fazerem a ondas onde não estava mais ninguém. Em 1974, António Vieira vivia na Linha do Estoril e ficava “maravilhado” ao ver amigos “fazer surf com aquelas pranchas enormes e pesadas”. Levou o ‘bichinho’ para o Algarve, onde tinha a família e os amigos dispostos a partilhar a aventura.
“Já conhecia o Luís (Brito) e o Fernando (Filipe). Eles tinham o Centro Náutico de Alvor, onde fazíamos windsurf e começámos a fazer surf. Era engraçado porque não havia mais ninguém na água”, recordou António Vieira. Luís Brito e Fernando Filipe conheceram-se na caça submarina e montaram o negócio do centro náutico em Alvor; e foi nessa praia que começaram a fazer surf, depois no Vau, aproveitando “os picos de sueste no verão”.
“Quando havia ondas, fechávamos o centro náutico e íamos fazer surf”, disse Luís Brito. “Mais tarde descobrimos a Praia da Rocha no inverno”, recorda Fernando Filipe. A Praia da Rocha era o habitat de Paulo Martins, que ali dava aulas de vela, na Associação Naval Infante Sagres (antecessora do Clube Naval de Portimão). Paulo Martins viu o surf chegar à Rocha com os turistas da Páscoa e depois ligou-se ao grupo de Alvor. Numa altura em que as comunicações era difíceis, Alvor e Rocha estavam mais distantes e o pólo de ligação foi o Liceu de Portimão.
O trio de Alvor começou a descobrir as boas ondas da zona de Sagres à boleia na carrinha do pai de António Vieira. “Íamos à boleia com o pai do Tó, que tinha uma propriedade na zona de Vila do Bispo. De manhã era surf e à tarde ajudávamos a apanhar ervilhas e favas“, revelou Fernando Filipe.
Eram os tempos das pranchas pesadas e toscas, com uma única quilha (‘fin’) e só mais tarde com duas e depois três, uma verdadeira revolução que chegou ao Algarve pelas mãos de um estrangeiro, Simon Anderson. As estradas eram más e viajar até Sagres demorava mais de uma hora. E nem sempre havia carro, ou dinheiro para combustível. “Íamos para Sagres de lambreta e o de trás levava as pranchas debaixo dos braços”, disse Paulo Martins.
A conquista da distância exigia esforço físico; a solução para a falta de material requeria muita imaginação. Sagres era também um bom destino para fazer negócios de material com os estrangeiros. Mas o material gasta-se e estraga-se, e não havia lojas para comprar novo. “O shop era mais fácil. Usava-se um tubo de clister ou de radiador e passava-se por dentro uma corda com nós, para ficar resistente. Depois atava-se ao tornozelo com um pedaço de cinto de segurança dos carros”, disse Paulo Martins.
Tudo tinha solução. Não havia fatos? Surfava-se de cuecas em Fevereiro, ou adaptavam-se fatos da caça submarina. Não havia wax? Esfregava-se velas nas pranchas, ou faziam-se autênticas “poções mágicas” em casa, com parafina, shampoo (para cheiro), óleo e até mel. “Cada um tinha a sua poção mágica”, recorda Fernando Filipe. Eram uma espécie de imagem de marca pessoal.
O maior obstáculo era mesmo a falta de pranchas. Sem prancha não se consegue surfar. Mas até para isso os pioneiros procuraram soluções. “Começámos a ‘shapar’ (fazer pranchas) no quintal da minha avó. Mas ela não gostava muito daquilo porque ficava tudo sujo com resina”, revelou Luís Brito. Os blocos e a resina eram de Nick Uricchio, que na altura fazia as pranchas Lipsticks na Costa de Caparica (1980-81) e em 1982 fundou a Semente Surfboards, na Ericeira.
As primeiras pranchas resultaram mal, mas os pioneiros foram afinando o método até conseguirem produzir pranchas mais eficazes. “Não tínhamos as pranchas que vocês têm hoje; mas fazíamos o surf que vocês fazem hoje”, diz, com orgulho, Luís Brito. Duas pranchas desse tempo podem ser vistas em Portimão, no bar Taberna Cool 33.
A paixão dos pioneiros permitiu-lhes ultrapassar todos os obstáculos e partir também à descoberta de ondas no Centro e Norte do País. Participaram nos primeiros campeonatos de surf e António Vieira conquistou mesmo um título de vice-campeão nacional.
Em 1990, Paulo Martins deu o grande impulso ao surf no Algarve ao abrir em Portimão a primeira ‘surf shop’ na região. Mais tarde abriu uma segunda em Faro, onde existia outro núcleo de pioneiros, com nomes conhecidos como Paulo Jorge (Carica) e Manuel Mestre (Necas). Este último é o actual presidente do Clube de Surf de Faro.
Os pioneiros de Portimão temem que o espírito de “aventura” e o “modo de viver” que descobriram no surf há mais de 30 anos se perca no “negócio” e “moda” em que o surf se transformou. Mas dá-lhes gosto ver as novas gerações continuarem à procura das ondas. “As pessoas que na altura nos chamava, vadios, agora compram fatos para os netos”, conclui Luís Brito.
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